sábado, 12 de setembro de 2009

Lua adversa

Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...
(Cecília Meireles)

Astigmatismo


Onde neve, leio cor
Onde solidão, leio primavera
Onde quente, leio tremor
Onde amargo, leio mel
Onde sombra, leio sol
Onde futuro, leio ancião
Onde simples, leio teia
Onde mar, leio sede
Onde vida, leio vazio
Onde nunca, leio talvez
Onde chuva, leio varal
Onde bravo, leio cordeiro
Onde muito, leio migalhas
Onde pedra, leio nuvem
Onde santo, leio tesão
Onde você, leio ninguém.
(Mony Rocha)
Voar
nas asas luminosas do pensamento,
ao som de uma mágica melodia
e só pousar quando não mais
existir amanhã...
(Mony Rocha)

Primeiros capítulos ou Boletim emocional - Parte I

Estado atual: sinto-me como se estivesse mergulhando no espaço sem fim. Uma sensação de liberdade e, ao mesmo tempo, de solidão. Se é bom ou é ruim, saberei daqui a alguns capítulos...
(Mony Rocha)

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Preciso tanto

Preciso sim, preciso tanto. Alguém que aceite tanto meus sonos demorados quanto minhas insônias insuportáveis. Tanto meu ciclo ascético Francisco de Assis quanto meu ciclo etílico bukovskiano. Que me desperte com um beijo, abra a janela para o sol ou a penumbra. Tanto faz, e sem dizer nada me diga o tempo inteiro alguma coisa como eu sou o outro ser conjunto ao teu, mas não sou tu, e quero adoçar tua vida. Preciso do teu beijo de mel na minha boca de areia seca, preciso da tua mão de seda no couro da minha mão crispada de solidão. Preciso dessa emoção que os antigos chamavam de amor, quando sexo não era morte e as pessoas não tinham medo disso que fazia a gente dissolver o próprio ego no ego do outro e misturar coxas e espíritos no fundo do outro-você, outro-espelho, outro-igual-sedento-de-não-solidão, bicho-carente, tigre e lótus. Preciso de você que eu tanto amo e nunca encontrei. Para continuar vivendo, preciso da parte de mim que não está em mim, mas guardada em você que eu não conheço.
(Caio Fernando Abreu)

Emergência


Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela abafada,esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo-
para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.
(Mário Quintana)

Insônia

Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.
Espera-me uma insônia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.

Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite —
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!

Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!

Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.

Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.

Estou escrevendo versos realmente simpáticos —
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!

Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir.
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstração de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo — sei lá salvo o quê...

Não durmo. Não durmo. Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo exceto no poder dormir!

Ó madrugada, tardas tanto... Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...
Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.

Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.
Vem, madrugada, chega!

Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não tenho energia para nada, para mais nada...
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim, escritos no dia seguinte.
Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.

Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz em toda a Natureza.
A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exatamente.
A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras.
Costuma dizer-se isto.
A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,
Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.
Exatamente. Mas não durmo.
(Fernando Pessoa)

Acho que dá

Eu vou ver se tomo conto de mim, bem
Aqui não é o mundo de Adão
E volta e meia aqui tudo pifa
É tempo, grana, amor, avião
Então me bate aquele medo
Solidão geral
Mas tendo os meus amigos por perto
Eu acho que não fica tão mal
Só quero achar que vai dar
Periga escuta na esquina
Caretas marcam sob pressão
que a gente sempre com tudo em cima
o céu, a terra, a vida, a visão
Só quero mesmo que o meu desejo
Saiba sempre enlouquecer
E a calma acentuando meus medos
Assim eu acho que dá pra vencer
Só quero achar que vai dar
(Marina Lima / Tavinho Paes)
"Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada".
(Clarice Lispector)

Blues do elevador

Ora quem é que não sabe
O que é se sentir sozinho
Mais sozinho que um elevador vazio
Achando a vida tão chata
Achando a vida mais chata
Do que um cantor de soul

Sou eu quem te refresca a memória
Quando te esqueces de regar as plantas
E de dependurar as roupas brancas no varal
Só faz milagres quem crê que faz milagres
Como transformar lágrima em canção

Vejo os pombos no asfalto
Eles sabem voar alto
Mas insistem em catar as migalhas do chão
Sei rir mostrando os dentes
E a língua afiada
Mais cortante que um velho blues

Mas hoje eu só quero chorar
Como um poeta do passado
E fumar o meu cigarro
Na falta de absinto
Eu sinto tanto eu sinto muito eu nada sinto
Como dizia Madalena
Replicando os fariseus
Quem dá aos pobres empresta
A deus
(Zeca Baleiro)
"Depois de todas as tempestades e naufrágios, o que fica de mim em mim é cada vez mais essencial e verdadeiro".
(Caio Fernando Abreu - conto "Lixo e Purpurina" do livro "Ovelhas Negras")

Música

Nosso sonho
Se perdeu no fio da vida
E eu vou embora
Sem mais feridas
Sem despedidas
Eu quero ver o mar
Eu quero ver o mar
Eu quero ver o mar
Eu quero ver o mar

Se voltar desejos
Ou se eles foram mesmo
Lembre da nossa música
Música
Se lembrar dos tempos
Dos nossos momentos
Lembre da nossa música
Música

Nossas juras de amor
Já desbotadas
Nossos beijos de outrora
Foram guardados
Nosso mais belo plano
Desperdiçado
Nossa graça e vontade
Derretem na chuva

Se voltar desejos
Ou se eles foram mesmo
Lembre da nossa música
Música
Se lembrar dos tempos
Dos nossos momentos
Lembre da nossa música
Música

Um costume de nós
Fica agarrado
As lembranças, os cheiros.
Dilacerados
Nossa bela história
Tá no passado
O amor que me tinhas
Era pouco e se acabou

Se voltar desejos
Ou se eles foram mesmo
Lembre da nossa música
Música
Se lembrar dos tempos
Dos nossos momentos
Lembre da nossa música
Música

(Liminha / Vanessa da Mata)

Novamente

me disse vai embora eu não fui
você não dá valor ao que possui
enquanto sofre o coração intui
que ao mesmo tempo que magoa o tempo
o tempo flui

assim o sangue corre em cada veia
o vento brinca com os grãos de areia
poetas cortejando a branca luz
e ao mesmo tempo em que machuca o tempo
me passeia

quem sabe o que se dá em mim
quem sabe o que será de nós
o tempo que antecipa o fim
também desata os nós

quem sabe soletrar adeus
sem lágrimas, nenhuma dor
os pássaros atrás do sol
as dunas de poeira
o céu de anil do pólo sul
a dinamite no paiol
não há limite no anormal

é que nem sempre o amor
é tão azul

a música preenche a tua falta
motivo dessa solidão sem fim
se alinham pontos negros de nós dois
e arriscam uma fuga contra o tempo
o tempo salta
(Fred Martins)
O coração da fêmea é um labirinto de subtilezas que desafia a mente grosseira do macho trapaceiro. Se quiser realmente possuir uma mulher, tem que pensar como ela, e a primeira coisa é conquistar-lhe a alma. O resto, o doce envoltório macio que nos faz perder o sentido e a virtude, vem por acréscimo.
(Carlos Ruiz Zafón, A Sombra do Vento)

A gente se acostuma...

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e não ver vista que não sejam as janelas ao redor. E porque não tem vista logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, se esquece do sol, se esquece do ar, esquece da amplidão.
A gente se acostuma a acordar sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder tempo. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E não aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: “hoje não posso ir”. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisa tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que se deseja e necessita. E a lutar para ganhar com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar nas ruas e ver cartazes. A abrir as revistas e ler artigos. A ligar a televisão e assistir comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição, às salas fechadas de ar condicionado e ao cheiro de cigarros. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam à luz natural. Às bactérias de água potável. À contaminação da água do mar. À morte lenta dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galo de madrugada, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta por perto.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta lá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua o resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem muito sono atrasado.
A gente se acostuma a não falar na aspereza para preservar a pele. Se acostuma para evitar sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.

(Marina Colassanti)

Todas as vidas


Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho,
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda, desabusada,
sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha, e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra, meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada, tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.
(Cora Coralina)

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Parece que existem partes do meu organismo que não funcionam como deviam. Não é uma grande novidade.
Há coisas no meu corpo que parecem ter vida própria.
Em breve serei outra vez analisada, vários componentes do meu organismo serão medidos.
Aborrece-me essa perspectiva, embora já devesse estar habituada. Mais do que a intrusão de agulhas, ondas sonoras, na minha intimidade, chateia-me o fato de não medirem nada convenientemente.
Nunca conseguem medir o meu medo naquela altura, maior do que o medo de estar perdida num espaço que não conheço, maior do que os medos da infância.
Nunca conseguem medir os meus desejos, os meus sentimentos, a minha vontade de viver, contrariando aqueles valores de referência, não conseguem de todo medir os meus afetos.
Irão dizer, uma vez mais, que o meu coração tem uma forma invulgar, que lhe dá um ritmo próprio.
Acho que sempre desconfiei disso, o meu coração não está de acordo com as normas vigentes, bate ao seu ritmo, não a um compasso estudado e estereotipado, tem também vida própria.
Sempre o suspeitei.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Pernas entrelaçadas
Na dança dos corpos ardentes
E insanos da paixão.
Nada mais importa,
Nem a vida, nem a morte
Apenas o gozo
Úmido e eterno a marcar
Dois corações solitários.
(Mony Rocha)

O homem invisível

A boca cala
E engole seco a saliva
Que não existe
O coração se fecha e
Finge não bater forte
Os olhos desviam
E procuram por cores
Que apaguem o negro
Deitado ali no chão
Imundo, quase morto
Quase ninguém
A suplicar uma esmola
Um pedaço de vida...
(Mony Rocha)
Tranco a sete chaves meu coração
E jogo as chaves fora
Para não haver possibilidades
De abri-lo novamente.
Não quero mais sofrer,
Não quero mais sentir...
Só o que me resta agora é
Aguardar os derradeiros dias
Em silêncio...
(Mony Rocha)

Vigília

Se eu tivesse aí tinha pão.

Meu olhar manso e quente preso.

Vigília .


Se eu tivesse aí não tinha, não tava.

Minha boca muda só olhava.

Perseguia tua cor, teu dourado....



Ah se seu tivesse aí.....

E no meu silêncio, minha constância, te ensinava.

A esperar, como espera o cão.....


Se eu tivesse aí..

Eu me amava só um pouquinho enquanto esperava.
(Marcia Lima Falcão)

Cheiro de azul


Era uma manhã assim
De um azul assim
Tão fundo assim
Azul fosco


Que o céu e o mar
Quando se amavam
Eram um só azul


E as árvores verdes
Cor da terra
Aguardavam calmas
O rebentar do dia


E eu acordei poeta
Cheio de azul e verde
E cheirando a mar.


(Antonio Carlos Borges)

Praia de Icaraí – 1996
Itaipuaçu – 14 - 06/09/2009

móvel - ser

Sou
A peça móvel do seu corpo
Das frias e quentes
Noites longas
Sou o que sobra
Entre as carícias e delícias

Sou
Onde suas pernas
Caem
Onde sua boca
Cala

Sou
Onde meu coração
Acelerado
Grita seu nome.

(Antonio Carlos Borges)
São Gonçalo, Novembro 1993.
Itaipuaçu – o4-14/09/2009
Rio de Janeiro - 09/09/2009

Será arte?

Escrevo como quem conta
A história de outro
Em minha própria história.


Expectador de mim mesmo
Autopsicográfo-me
Faço-me mito

Suporto a exaustiva fadiga
Da arte de mentir-me.

(Antonio Carlos Borges)
São Gonçalo, Janeiro de 1993.
Itaipuaçu 04/09/2009

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

O amor, quando se revela

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há-de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...
Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pra saber que a estão a amar!
Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!
Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...
(Fernando Pessoa)

Viver

Quem nunca quis morrer
Não sabe o que é viver
Não sabe que viver é abrir uma janela
E pássaros pássaros sairão por ela
E hipocampos fosforescentes
Medusas translúcidas
Radiadas
Estrelas-do-mar... Ah,
Viver é sair de repente
Do fundo do mar
E voar...
e voar...
cada vez para mais alto
Como depois de se morrer!
(Mário Quintana)

Epigrama 2


(Inédito. Dedicado a ninguém)

das folhas, o sumo
do sexo , o gozo
do chão, fragmentos
(Jorge Salomão)

sábado, 15 de agosto de 2009

LIBRO DE LAS PREGUNTAS


XLI
Cuánto dura un rinoceronte

Después de ser enternecido?

Qué cuentan de nuevo las hojas

De la reciente primavera?

Las hojas viven en invierno

En secreto, con las raíces?

Qué aprendió el árbol de la tierra

Para conversar con el cielo?

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

O Fim


“O tempo que anuncia o fim
também desata os nós”
Fred Martins


Não me espanta
Não ver seu rosto
Não tocar seu corpo
Não sentir seu cheiro


Mas me espanta
Não te reconhecer aqui
Nos sonhos que inventei
Nos versos que construí



(Antonio Carlos Borges)
Itaipuaçu 10/08 - 04/09/2009

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Inventário

Ontem
Ou anteontem – não sei bem
Revisitando o tempo
Encontrei meus mortos
Havia matado meus vivos
No nó dos momentos

Falaram-me de mim
Contaram-me da dor que eu senti
Do meu espanto e do meu medo
Dos meus enganos e mentiras

Não falaram de amor

Lembraram-me da casa de três janelas
E porta para rua
Dos convites pro café
Do quintal e dos limões
Do pé de sapoti e dos morcegos

Mostraram-me de novo o rio
O rio que corre manso
Sem deixar a beira
Indiferente à eira do casarão
E às palmeiras da beira rio

Então as horas não passaram
Era como se com eles
O tempo perdesse a pressa
Da mesma forma que o poço perdeu o fundo


E então o cio

(Antonio Carlos Borges)

Niterói 05/06 – 17/06 – 19/06/2009

Itaipuaçu 10/08/2009

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Sonho

Hoje sonhei com um amor que não tenho. Que jamais poderei ter. Um sonho onde eu era feliz ao lado de alguém que não conheço, mas que deixou suas marcas em mim. Quando acordei, sentia ainda o hálito de sua boca na minha. O calor do seu corpo junto ao meu e uma saudade imensa invadiu o meu coração. Fechei os olhos e ele ainda estava presente em meus pensamentos. Nunca mais esquecerei aquele sorriso de menino. Nunca mais serei feliz como fui ao seu lado. De volta à realidade, levanto da cama e vou ao banheiro. Abro o chuveiro e enquanto espero a água aquecer, observo por alguns segundos a imagem refletida no espelho. Dai-me Senhor, coragem para enfrentar mais um dia.
(Mony Rocha)

quinta-feira, 18 de junho de 2009

A última crônica

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico.

Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.

Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.

A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.

São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo.

A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.

Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

(Fernando Sabino)

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Buracos, pião e corda



Quero explodir seu corpo
Com meu canto
Pra desatar em desencanto
Nossa relação Pião e Corda
Na qual me estico
E você roda

(Antonio Carlos Borges )
Fortaleza 30/05 - Itaipuaçu 04/06/2009 -
Niterói 17/06 - 20/06/2009

O Dom

A boca
Era o beijo
O sabor grave de cerveja
Era uma mão a roçar a nuca
Como se profana o sacro

Ao mesmo tempo
Era o doce
A inconseqüência
Era um sopro de infância
Tão sutil que só aquele que profana sente

Era como se o desejo
Ao se encontrar menino
Se transmutasse em vento
Em mar
Em som
Em tom

Era o vão das coisas que vão
Era a coma
Era o dom


(Antonio Carlos Borges )
Barra de São João 14/04/2005 - Itaipuaçu 04/06/2009
Niteroi 16/06 - 17/06/2009

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Lençóis de Mandacaru















Nasci
Entre o rio e o mar

E lá ouvi
Como o canto de um bem
Te vi

E sei
As coisas que aprendi por lá
O sorriso e a força do cantar

Cantar o que me doeu
Quando deixei meu lugar
Cantar o que estava por vir
E o que perdeu seu lugar

Contos da noite e do breu
Deslizam sobre a duna
E o vento seco passa a limpo
O rio fundo e o mar

(Antonio Carlos Borges)
Itaipuaçu 12/04 - 01/05 - 14/05/2009

no impasse – no passe – passe


Algumas coisas na vida
não passam nunca

A sua mão na minha
não passa

O seu olhar no meu
não passa


(Antonio Carlos Borges)
Barra de São João - 02/05/2009)

Todos


Todos os amores que tive
Movem-se dentro de mim
Até os esquecidos
Todos os amores

Lambem-se
Vadiam salientes com bocas salivantes
Amam-se entre si
Como se de mim não mais os fossem

Todos os amores que tenho
Abusam de mim
Usam minhas calças,
Trançam minhas pernas, meus braços,
Mordem os meus dentes
E de repente já não estão mais aqui

Todos os amores.


(Antonio Carlos Borges )
Niterói 26/01/2006 - Itaipuaçu 13/04/2009

domingo, 26 de abril de 2009

Do Pessoa ao Zé




Pensar é estar doente dos olhos.

Disto o “Pessoas” já sabia
e lá estava ele,
doente.

Quero parar de pensar
Não penso se distraído
Penso quando o sentir me trai

Penso quando da minha boca
Ambígua e feminina
A voz evasiva sai

Os sentidos quando ausentes
Vago entre o sim
E o não de um sonho
Adivinhando o som
De uma das mãos
Ao encontrar a outra

Quando ausentes
Permaneço em silêncio
Como quem flutua
Abrandando o tempo

Quando ausentes
Me lanço ao caos
Para um lugar incerto
Que há entre o zero e o Ás

Quero aqui fazer uma canção pra os sentidos
Mas não cantarei quaisquer sentidos
Apenas os bons

Cantarei aqueles que me presenteiam
Com textura fina e branca da pele de quem amo
E com o perfume do meu Saint Laurent Francês

Cantarei os que me permitem
A Valsa Brasileira do Chiquedu
E o agridoce de fruta dormida do acordar a dois

Cantarei
Ah! sim - cantarei
Os que me garantem ser
A visão do desejo nos olhos do meu amor.

No mais, à moda Zé, estou indo embora...

(Antonio Carlos Borges)

Itaipuaçu 30/03/2009

Niteroi 16/06/2009

quinta-feira, 2 de abril de 2009

"Mas há a vida que é para ser intensamente vivida, há o amor. Que tem que ser vivido até a última gota. Sem nenhum medo. Não mata.”
(Clarice Lispector)

domingo, 29 de março de 2009

Água e Vinho

Todos os dias
passeava secamente na
soleira do quintal
a hora morta, a pedra morta
agonia e as laranjas
do quintal
A vida ia entre o muro e
as paredes de silêncio
e os cães que vigiavam o
seu sono não dormiam
viam sombras no ar
viam sombras no jardim
A lua morta, a noite morta
ventania e o rosário
sobre o chão
E um incêndio amarelo e
provisório consumia o coração
E começou a procurar pelas
fogueiras e lentamente
o seu coração já não temia
as chamas do inferno e
das trevas sem fim...
Haveria de chegar
o amor
(Geraldo Carneiro)

quinta-feira, 26 de março de 2009

"Como se te perdesse, assim te quero.Como se não te visse (favas douradas Sob um amarelo) assim te apreendo brusco Inamovível, e te respiro inteiro."
(Hilda Hilst)

A palavra

... Sim Senhor, tudo o que queira, mas são as palavras as que cantam, as que sobem e baixam ... Prosterno-me diante delas... Amo-as, uno-me a elas, persigo-as, mordo-as, derreto-as ... Amo tanto as palavras ... As inesperadas ... As que avidamente a gente espera, espreita até que de repente caem ... Vocábulos amados ... Brilham como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal, orvalho ... Persigo algumas palavras ... São tão belas que quero colocá-las todas em meu poema ... Agarro-as no vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas ... E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as ... Deixo-as como estalactites em meu poema; como pedacinhos de madeira polida, como carvão, como restos de naufrágio, presentes da onda ... Tudo está na palavra ... Uma idéia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar ou porque outra se sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava e que a obedeceu ... Têm sombra, transparência, peso, plumas, pêlos, têm tudo o que ,se lhes foi agregando de tanto vagar pelo rio, de tanto transmigrar de pátria, de tanto ser raízes ... São antiqüíssimas e recentíssimas. Vivem no féretro escondido e na flor apenas desabrochada ... Que bom idioma o meu, que boa língua herdamos dos conquistadores torvos ... Estes andavam a passos largos pelas tremendas cordilheiras, pelas .Américas encrespadas, buscando batatas, butifarras*, feijõezinhos, tabaco negro, ouro, milho, ovos fritos, com aquele apetite voraz que nunca. mais,se viu no mundo ... Tragavam tudo: religiões, pirâmides, tribos, idolatrias iguais às que eles traziam em suas grandes bolsas... Por onde passavam a terra ficava arrasada... Mas caíam das botas dos bárbaros, das barbas, dos elmos, das ferraduras. Como pedrinhas, as palavras luminosas que permaneceram aqui resplandecentes... o idioma. Saímos perdendo... Saímos ganhando... Levaram o ouro e nos deixaram o ouro... Levaram tudo e nos deixaram tudo... Deixaram-nos as palavras.
(Pablo Neruda)

Cogito

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim.
(Torquato Neto)

O último poema

Assim eu quereria meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.
(Manuel Bandeira)

quarta-feira, 25 de março de 2009

Canção na plenitude

Não tenho mais os olhos de menina
nem corpo adolescente, e a pele
translúcida há muito se manchou.
Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura
agrandada pelos anos e o peso dos fardos
bons ou ruins.
(Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.)

O que te posso dar é mais que tudo
o que perdi: dou-te os meus ganhos.
A maturidade que consegue rir
quando em outros tempos choraria,
busca te agradar
quando antigamente quereria
apenas ser amada.
Posso dar-te muito mais do que beleza
e juventude agora: esses dourados anos
me ensinaram a amar melhor, com mais paciência
e não menos ardor, a entender-te
se precisas, a aguardar-te quando vais,
a dar-te regaço de amante e colo de amiga,
e sobretudo força — que vem do aprendizado.
Isso posso te dar: um mar antigo e confiável
cujas marés — mesmo se fogem — retornam,
cujas correntes ocultas não levam destroços
mas o sonho interminável das sereias.
(Lya Luft)

Os prazeres da psicanálise


(Cenário: bar movimentado, da moda, de preferência em Ipanema. Garçons lentos e displicentes. Os dois personagens, ELE e ELA, depois das dificuldades presumíveis que podem ser inventadas pelo diretor, conseguem uma mesa. Esperam duas horas por um garçom que já passou por eles no mínimo duzentas vezes e o diálogo se inicia.)

ELE — O que é que você quer? Chope?
ELA — Por quê deveria querer chope? Pedir chope aqui é um tanto compulsivo. Você não pede chope por uma escolha livre: é uma compulsão. Coisa típica da neurose obsessiva. Você sabe muito bem que não é meu caso, querido.
ELE — Está bem. Você já passou duas horas com seu psicanalista, hoje. Será que não pode mudar de assunto?
ELA — Fique sabendo que o auto-conhecimento é o começo da cura. Depois, não tenho pressa em beber nada. Não sofro de nenhuma regressão à fase oral, como você.
ELE — Regressão a quê? Que diabo é isso? Não estou sentindo nada!
ELA — Está, sim. Está.
ELE — Claro que não.
ELA — Claro que está. Você é que não sabe.
ELE — Ué, não estou sentindo nada!
ELA — Pior. Muito pior. Não sente por causa de seus mecanismos de defesa. Você nunca ouviu falar de couraça caracterológica?
ELE — Nunca. O que é isso?
ELA — É uma pena.
ELE — Por quê?
ELA — Você está doente, meu amor. Muito doente.
ELE — (um tanto alarmado) Não!
ELA — (com firmeza) Doente, sim. Muito doente. Por que você não vai ao Dr. Hauser? Posso marcar hora para você, amanhã.
ELE — E quem é o Dr. Hauser?
ELA — Você está cansado de saber quem é o Dr. Hauser. Pergunta por causa de outro mecanismo de defesa. Seu caso está me parecendo mais grave do que eu pensava.
ELE — Está bem. Mas quem é ele.
ELA — Meu analista, é claro. Você vai gostar muito dele, querido. É um homem maravilhoso. Bonito, inteligente, culto, atlético, divino. Se eu já não estivesse no meu quinto ano de análise, poderia pensar até que é um semideus. Mas não. Já sei que é um ser humano como qualquer outro, sujeito aos mesmos erros e defeitos. Ele mesmo fez questão de deixar isso bem claro. Não é genial?
ELE — O que é genial?
ELA — Ora, o próprio Dr. Hauser dizer que é um ser humano. Só um homem divino diria isso.
ELE — Eu também reconheço que sou apenas um ser humano.
ELA — Mas você não é o Dr. Hauser. Não desanime nas primeiras sessões. suas resistências serão muito fortes, entende? Isso também aconteceu comigo, no começo. Mas o Dr. Hauser é um mestre no manejo da transferência e, depois de algum tempo, você vai sentir—se outra pessoa.
ELE — Mas eu não quero me sentir outra pessoa.
ELA — Coitadinho de você, meu bem. Num instante o Dr. Hauser vai convencer você de que você quer ser outra pessoa. Claro que quer.
ELE — Mas que outra pessoa, meu Deus?
ELA — Uma pessoa mais livre, mais independente. Sem essa dependência neurótica que você tem de mim, por exemplo.
ELE — (esmagado) E eu tenho dependência neurótica de você?
ELA — Claro. Qualquer pessoa com experiência de análise percebe isso logo de cara.
ELE — Você está quase me convencendo.
ELA — Tem uma fixação oral, também. E é um obsessivo-compulsivo típico. Já reparou essa mania por ordem e limpeza que você tem? Já? Aposto que não. Você não repara nada porque seu mecanismo repressivo tomou a forma da inversão. Você se acredita sadio quando está horrivelmente, miseravelmente, talvez até irrecuperavelmente doente.
ELE — (totalmente aterrado) Puxa! Acho que preciso beber alguma coisa. Posso pedir um chope?
ELA — Claro. Peça um para mim, também.
(Luiz Carlos Maciel)

Alcoólicas

É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d'água, bebida. A Vida é líquida.

Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d'água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.

E bebendo, Vida, recusamos o sólido
O nodoso, a friez-armadilha
De algum rosto sóbrio, certa voz
Que se amplia, certo olhar que condena
O nosso olhar gasoso: então, bebendo?
E respondemos lassas lérias letícias
O lusco das lagartixas, o lustrino
Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos
E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.
Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me
Na noite navegada, e rio, rio, e remendo
Meu casaco rosso tecido de açucena.
Se dedutiva e líquida, a Vida é plena.

Te amo, Vida, líquida esteira onde me deito
Romã baba alcaçuz, teu trançado rosado
Salpicado de negro, de doçuras e iras.
Te amo, Líquida, descendo escorrida
Pela víscera, e assim esquecendo
Fomes
País
O riso solto
A dentadura etérea
Bola
Miséria.
Bebendo, Vida, invento casa, comida
E um Mais que se agiganta, um Mais
Conquistando um fulcro potente na garganta
Um látego, uma chama, um canto. Amo-me.
Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos
Quando não sou líquida.

(Hilda Hilst)

Principalmente

sempre fui bem tratado como um príncipe
e fui me afeiçoando aos privilégios
aos florilégios e às vilegiaturas
que me couberam neste reino etéreo
e deletério, porque o esquecimento
é tão inevitável quanto a vida
e a morte é toda feita de mistério.
procuro ouvir a sorte nos meus búzios
como o Bilac ouvia suas estrelas,
coisa que nunca ouvi, mas compreendi
mesmo não tendo credo acreditável.
fui construindo assim meu edifício s
obre essa arquitetura de quimeras,
cujo arquiteto talvez fosse cego,
ou gênio, ou simplesmente ausente.

(Geraldo Carneiro)

Velhinha

Se os que me viram já cheia de graça
Olharem bem de frente para mim,
Talvez, cheios de dor, digam assim:
"Já ela é velha! Como o tempo passa!..."

Não sei rir e cantar por mais que faça!
Ó minhas mãos talhadas em marfim,
Deixem esse fio de oiro que esvoaça!
Deixem correr a vida até ao fim!

Tenho vinte e três anos! Sou velhinha!
Tenho cabelos brancos e sou crente...
Já murmuro orações... falo sozinha...

E o bando cor-de-rosa dos carinhos
Que tu me fazes, olho-os indulgente,
Como se fosse um bando de netinhos...
(Florbela Espanca)

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

(Fernando Pessoa)

Dona Doida

Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso
com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.

(Adélia Prado)
"É quase impossível evitar o excesso de amor que um bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo."

(Clarice Lispector - "Das Vantagens de Ser Bobo")

Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

(Adélia Prado)

Saber viver


Não sei...
Se a vida é curta
Ou longa demais pra nós,
Mas sei que nada do que vivemos
Tem sentido, se não tocamos o coração das pessoas.

Muitas vezes basta ser:
Colo que acolhe,
Braço que envolve,
Palavra que conforta,
Silêncio que respeita,
Alegria que contagia,
Lágrima que corre,
Olhar que acaricia,
Desejo que sacia,
Amor que promove.

E isso não é coisa de outro mundo,
É o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela
Não seja nem curta,
Nem longa demais,
Mas que seja intensa,
Verdadeira, pura...
Enquanto durar

(Cora Coralina)
"Goza a euforia do vôo do anjo perdido em ti. Não indague se nossas estradas, tempo e vento desabam no abismo. Que sabes tu do fim ? Se temes que teu mistério seja uma noite, enche-o de estrelas. No deslumbramento da ascensão, se pressentires que amanhã estarás mudo, esgota, como um pássaro, as canções que tens na garganta. Canta, canta. Talvez as canções adormeçam a fera que espera devorar o pássaro. Desde que nasceste não és mais que o vôo no tempo rumo aos céu? Que importa a rota! Voa e canta enquanto existirem as asas"

(Menotti del Picchia).

Infinito Particular

Eis o melhor e o pior de mim
O meu termômetro, o meu quilate
Vem, cara, me retrate. Não é impossível
Eu não sou difícil de ler. Faça sua parte
Eu sou daqui, eu não sou de Marte
Vem, cara, me repara
Não vê, tá na cara, sou porta bandeira de mim
Só não se perca ao entrar
No meu infinito particular
Em alguns instantes
Sou pequenina e também gigante
Vem, cara, se declara
O mundo é portátil
Pra quem não tem nada a esconder
Olha minha cara
É só mistério, não tem segredo
Vem cá, não tenha medo
A água é potável
Daqui você pode beber
Só não se perca ao entrar
No meu infinito particular

(Arnaldo Antunes, Marisa Monte, Carlinhos Brown)

"(...)Eu quis chamar o homem, para lhe dar um sorriso, mas ele ia já longe, sem se voltar nunca, como quem não tem frente, como quem só tem costas(...)"


(Guimarães Rosa)