"Pensar pede audácia, pois refletir é transgredir a ordem do superficial que nos pressiona tanto. Somos demasiado frívolos: buscamos o atordoamento das mil distrações, corremos de um lado a outro achando que somos grandes cumpridores de tarefas. Quando o primeiro dever seria de vez em quando parar e analisar: quem a gente é, o que fazemos com a nossa vida, o tempo, os amores". (Lya Luft)
sábado, 12 de setembro de 2009
Lua adversa
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.
Fases que vão e vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.
E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...
(Cecília Meireles)
Astigmatismo
Onde solidão, leio primavera
Onde quente, leio tremor
Onde amargo, leio mel
Onde sombra, leio sol
Onde futuro, leio ancião
Onde simples, leio teia
Onde mar, leio sede
Onde vida, leio vazio
Onde nunca, leio talvez
Onde chuva, leio varal
Onde bravo, leio cordeiro
Onde muito, leio migalhas
Onde pedra, leio nuvem
Onde santo, leio tesão
Onde você, leio ninguém.
(Mony Rocha)
Primeiros capítulos ou Boletim emocional - Parte I
sexta-feira, 11 de setembro de 2009
Preciso tanto
Emergência
Insônia
Nem na morte espero dormir.
Espera-me uma insônia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.
Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite —
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!
Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!
Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.
Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.
Estou escrevendo versos realmente simpáticos —
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!
Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir.
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstração de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo — sei lá salvo o quê...
Não durmo. Não durmo. Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo exceto no poder dormir!
Ó madrugada, tardas tanto... Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...
Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.
Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.
Vem, madrugada, chega!
Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não tenho energia para nada, para mais nada...
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim, escritos no dia seguinte.
Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.
Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz em toda a Natureza.
A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exatamente.
A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras.
Costuma dizer-se isto.
A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,
Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.
Exatamente. Mas não durmo.
(Fernando Pessoa)
Acho que dá
Aqui não é o mundo de Adão
E volta e meia aqui tudo pifa
É tempo, grana, amor, avião
Então me bate aquele medo
Solidão geral
Mas tendo os meus amigos por perto
Eu acho que não fica tão mal
Só quero achar que vai dar
Periga escuta na esquina
Caretas marcam sob pressão
que a gente sempre com tudo em cima
o céu, a terra, a vida, a visão
Só quero mesmo que o meu desejo
Saiba sempre enlouquecer
E a calma acentuando meus medos
Assim eu acho que dá pra vencer
Só quero achar que vai dar
(Marina Lima / Tavinho Paes)
Blues do elevador
O que é se sentir sozinho
Mais sozinho que um elevador vazio
Achando a vida tão chata
Achando a vida mais chata
Do que um cantor de soul
Sou eu quem te refresca a memória
Quando te esqueces de regar as plantas
E de dependurar as roupas brancas no varal
Só faz milagres quem crê que faz milagres
Como transformar lágrima em canção
Vejo os pombos no asfalto
Eles sabem voar alto
Mas insistem em catar as migalhas do chão
Sei rir mostrando os dentes
E a língua afiada
Mais cortante que um velho blues
Como um poeta do passado
E fumar o meu cigarro
Na falta de absinto
Eu sinto tanto eu sinto muito eu nada sinto
Como dizia Madalena
Replicando os fariseus
Quem dá aos pobres empresta
A deus
(Zeca Baleiro)
Música
Se perdeu no fio da vida
E eu vou embora
Sem mais feridas
Sem despedidas
Eu quero ver o mar
Eu quero ver o mar
Eu quero ver o mar
Eu quero ver o mar
Se voltar desejos
Ou se eles foram mesmo
Lembre da nossa música
Música
Se lembrar dos tempos
Dos nossos momentos
Lembre da nossa música
Música
Nossas juras de amor
Já desbotadas
Nossos beijos de outrora
Foram guardados
Nosso mais belo plano
Desperdiçado
Nossa graça e vontade
Derretem na chuva
Se voltar desejos
Ou se eles foram mesmo
Lembre da nossa música
Música
Se lembrar dos tempos
Dos nossos momentos
Lembre da nossa música
Música
Um costume de nós
Fica agarrado
As lembranças, os cheiros.
Dilacerados
Nossa bela história
Tá no passado
O amor que me tinhas
Era pouco e se acabou
Se voltar desejos
Ou se eles foram mesmo
Lembre da nossa música
Música
Se lembrar dos tempos
Dos nossos momentos
Lembre da nossa música
Música
(Liminha / Vanessa da Mata)
Novamente
você não dá valor ao que possui
enquanto sofre o coração intui
que ao mesmo tempo que magoa o tempo
o tempo flui
assim o sangue corre em cada veia
o vento brinca com os grãos de areia
poetas cortejando a branca luz
e ao mesmo tempo em que machuca o tempo
me passeia
quem sabe o que se dá em mim
quem sabe o que será de nós
o tempo que antecipa o fim
também desata os nós
quem sabe soletrar adeus
sem lágrimas, nenhuma dor
os pássaros atrás do sol
as dunas de poeira
o céu de anil do pólo sul
a dinamite no paiol
não há limite no anormal
é que nem sempre o amor
é tão azul
a música preenche a tua falta
motivo dessa solidão sem fim
se alinham pontos negros de nós dois
e arriscam uma fuga contra o tempo
o tempo salta
(Fred Martins)
A gente se acostuma...
Todas as vidas
uma cabocla velha
de mau-olhado,
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho,
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda, desabusada,
sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha, e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra, meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada, tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.
(Cora Coralina)
quinta-feira, 10 de setembro de 2009
quarta-feira, 9 de setembro de 2009
O homem invisível
Vigília
Meu olhar manso e quente preso.
Vigília .
Se eu tivesse aí não tinha, não tava.
Minha boca muda só olhava.
Perseguia tua cor, teu dourado....
Ah se seu tivesse aí.....
E no meu silêncio, minha constância, te ensinava.
A esperar, como espera o cão.....
Se eu tivesse aí..
Eu me amava só um pouquinho enquanto esperava.
Cheiro de azul
De um azul assim
Tão fundo assim
Azul fosco
Que o céu e o mar
Quando se amavam
Eram um só azul
E as árvores verdes
Cor da terra
Aguardavam calmas
O rebentar do dia
E eu acordei poeta
Cheio de azul e verde
E cheirando a mar.
(Antonio Carlos Borges)
Itaipuaçu – 14 - 06/09/2009
móvel - ser
A peça móvel do seu corpo
Das frias e quentes
Noites longas
Sou o que sobra
Entre as carícias e delícias
Sou
Onde suas pernas
Caem
Onde sua boca
Cala
Sou
Onde meu coração
Acelerado
Grita seu nome.
(Antonio Carlos Borges)
São Gonçalo, Novembro 1993.
Itaipuaçu – o4-14/09/2009
Rio de Janeiro - 09/09/2009
Será arte?
A história de outro
Em minha própria história.
Expectador de mim mesmo
Autopsicográfo-me
Faço-me mito
Suporto a exaustiva fadiga
Da arte de mentir-me.
(Antonio Carlos Borges)
São Gonçalo, Janeiro de 1993.
Itaipuaçu 04/09/2009
quinta-feira, 27 de agosto de 2009
O amor, quando se revela
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há-de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...
Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pra saber que a estão a amar!
Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!
Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...
(Fernando Pessoa)
Viver
Não sabe o que é viver
Não sabe que viver é abrir uma janela
E pássaros pássaros sairão por ela
E hipocampos fosforescentes
Medusas translúcidas
Radiadas
Estrelas-do-mar... Ah,
Viver é sair de repente
Do fundo do mar
E voar...
e voar...
cada vez para mais alto
Como depois de se morrer!
(Mário Quintana)
sábado, 15 de agosto de 2009
LIBRO DE LAS PREGUNTAS
segunda-feira, 10 de agosto de 2009
sexta-feira, 7 de agosto de 2009
Inventário
Ou anteontem – não sei bem
Revisitando o tempo
Encontrei meus mortos
Havia matado meus vivos
No nó dos momentos
Falaram-me de mim
Contaram-me da dor que eu senti
Do meu espanto e do meu medo
Dos meus enganos e mentiras
Não falaram de amor
Lembraram-me da casa de três janelas
E porta para rua
Dos convites pro café
Do quintal e dos limões
Do pé de sapoti e dos morcegos
Mostraram-me de novo o rio
O rio que corre manso
Sem deixar a beira
Indiferente à eira do casarão
E às palmeiras da beira rio
Então as horas não passaram
Era como se com eles
O tempo perdesse a pressa
Da mesma forma que o poço perdeu o fundo
E então o cio
(Antonio Carlos Borges)
Niterói 05/06 – 17/06 – 19/06/2009
Itaipuaçu 10/08/2009
quarta-feira, 24 de junho de 2009
Sonho
quinta-feira, 18 de junho de 2009
A última crônica
Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo.
A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.
(Fernando Sabino)
quinta-feira, 4 de junho de 2009
Buracos, pião e corda
Quero explodir seu corpo
Com meu canto
Pra desatar em desencanto
Nossa relação Pião e Corda
Na qual me estico
E você roda
(Antonio Carlos Borges )
Fortaleza 30/05 - Itaipuaçu 04/06/2009 - Niterói 17/06 - 20/06/2009
O Dom
Era o beijo
O sabor grave de cerveja
Era uma mão a roçar a nuca
Como se profana o sacro
Ao mesmo tempo
Era o doce
A inconseqüência
Era um sopro de infância
Tão sutil que só aquele que profana sente
Era como se o desejo
Ao se encontrar menino
Se transmutasse em vento
Em mar
Em som
Em tom
Era o vão das coisas que vão
Era a coma
Era o dom
(Antonio Carlos Borges )
Barra de São João 14/04/2005 - Itaipuaçu 04/06/2009
Niteroi 16/06 - 17/06/2009
quinta-feira, 14 de maio de 2009
Lençóis de Mandacaru
Nasci
Entre o rio e o mar
E lá ouvi
Como o canto de um bem
Te vi
E sei
As coisas que aprendi por lá
O sorriso e a força do cantar
Cantar o que me doeu
Quando deixei meu lugar
Cantar o que estava por vir
E o que perdeu seu lugar
Contos da noite e do breu
Deslizam sobre a duna
E o vento seco passa a limpo
O rio fundo e o mar
(Antonio Carlos Borges)
Itaipuaçu 12/04 - 01/05 - 14/05/2009
no impasse – no passe – passe
Algumas coisas na vida
não passam nunca
A sua mão na minha
não passa
O seu olhar no meu
não passa
(Antonio Carlos Borges)
Todos
Todos os amores que tive
Movem-se dentro de mim
Até os esquecidos
Todos os amores
Lambem-se
Vadiam salientes com bocas salivantes
Amam-se entre si
Como se de mim não mais os fossem
Todos os amores que tenho
Abusam de mim
Usam minhas calças,
Trançam minhas pernas, meus braços,
Mordem os meus dentes
E de repente já não estão mais aqui
Todos os amores.
(Antonio Carlos Borges )
domingo, 26 de abril de 2009
Do Pessoa ao Zé
Pensar é estar doente dos olhos.
Disto o “Pessoas” já sabia
e lá estava ele,
doente.
Quero parar de pensar
Não penso se distraído
Penso quando o sentir me trai
Penso quando da minha boca
Ambígua e feminina
A voz evasiva sai
Os sentidos quando ausentes
Vago entre o sim
E o não de um sonho
Adivinhando o som
De uma das mãos
Ao encontrar a outra
Quando ausentes
Permaneço em silêncio
Como quem flutua
Abrandando o tempo
Quando ausentes
Me lanço ao caos
Para um lugar incerto
Que há entre o zero e o Ás
Quero aqui fazer uma canção pra os sentidos
Mas não cantarei quaisquer sentidos
Apenas os bons
Cantarei aqueles que me presenteiam
Com textura fina e branca da pele de quem amo
E com o perfume do meu Saint Laurent Francês
Cantarei os que me permitem
A Valsa Brasileira do Chiquedu
E o agridoce de fruta dormida do acordar a dois
Cantarei
Ah! sim - cantarei
Os que me garantem ser
A visão do desejo nos olhos do meu amor.
No mais, à moda Zé, estou indo embora...
(Antonio Carlos Borges)
Itaipuaçu 30/03/2009
Niteroi 16/06/2009
quinta-feira, 2 de abril de 2009
domingo, 29 de março de 2009
Água e Vinho
passeava secamente na
soleira do quintal
a hora morta, a pedra morta
agonia e as laranjas
do quintal
A vida ia entre o muro e
as paredes de silêncio
e os cães que vigiavam o
seu sono não dormiam
viam sombras no ar
viam sombras no jardim
A lua morta, a noite morta
ventania e o rosário
sobre o chão
E um incêndio amarelo e
provisório consumia o coração
E começou a procurar pelas
fogueiras e lentamente
o seu coração já não temia
as chamas do inferno e
das trevas sem fim...
Haveria de chegar
o amor
quinta-feira, 26 de março de 2009
A palavra
Cogito
O último poema
quarta-feira, 25 de março de 2009
Canção na plenitude
O que te posso dar é mais que tudo
Os prazeres da psicanálise
(Cenário: bar movimentado, da moda, de preferência em Ipanema. Garçons lentos e displicentes. Os dois personagens, ELE e ELA, depois das dificuldades presumíveis que podem ser inventadas pelo diretor, conseguem uma mesa. Esperam duas horas por um garçom que já passou por eles no mínimo duzentas vezes e o diálogo se inicia.)
Alcoólicas
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d'água, bebida. A Vida é líquida.
Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d'água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.
E bebendo, Vida, recusamos o sólido
O nodoso, a friez-armadilha
De algum rosto sóbrio, certa voz
Que se amplia, certo olhar que condena
O nosso olhar gasoso: então, bebendo?
E respondemos lassas lérias letícias
O lusco das lagartixas, o lustrino
Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos
E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.
Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me
Na noite navegada, e rio, rio, e remendo
Meu casaco rosso tecido de açucena.
Se dedutiva e líquida, a Vida é plena.
Te amo, Vida, líquida esteira onde me deito
Romã baba alcaçuz, teu trançado rosado
Salpicado de negro, de doçuras e iras.
Te amo, Líquida, descendo escorrida
Pela víscera, e assim esquecendo
Fomes
País
O riso solto
A dentadura etérea
Bola
Miséria.
Bebendo, Vida, invento casa, comida
E um Mais que se agiganta, um Mais
Conquistando um fulcro potente na garganta
Um látego, uma chama, um canto. Amo-me.
Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos
Quando não sou líquida.
(Hilda Hilst)
Principalmente
Velhinha
Autopsicografia
Dona Doida
com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.
Com licença poética
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
(Adélia Prado)
Saber viver
Se a vida é curta
Ou longa demais pra nós,
Mas sei que nada do que vivemos
Tem sentido, se não tocamos o coração das pessoas.
Colo que acolhe,
Braço que envolve,
Palavra que conforta,
Silêncio que respeita,
Alegria que contagia,
Lágrima que corre,
Olhar que acaricia,
Desejo que sacia,
Amor que promove.
É o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela
Não seja nem curta,
Nem longa demais,
Mas que seja intensa,
Verdadeira, pura...
Enquanto durar
(Menotti del Picchia).
Infinito Particular
O meu termômetro, o meu quilate
Vem, cara, me retrate. Não é impossível
Eu não sou difícil de ler. Faça sua parte
Eu sou daqui, eu não sou de Marte
Vem, cara, me repara
Não vê, tá na cara, sou porta bandeira de mim
Só não se perca ao entrar
No meu infinito particular
Em alguns instantes
Sou pequenina e também gigante
Vem, cara, se declara
O mundo é portátil
Pra quem não tem nada a esconder
Olha minha cara
É só mistério, não tem segredo
Vem cá, não tenha medo
A água é potável
Daqui você pode beber
Só não se perca ao entrar
No meu infinito particular
(Arnaldo Antunes, Marisa Monte, Carlinhos Brown)