"Pensar pede audácia, pois refletir é transgredir a ordem do superficial que nos pressiona tanto. Somos demasiado frívolos: buscamos o atordoamento das mil distrações, corremos de um lado a outro achando que somos grandes cumpridores de tarefas. Quando o primeiro dever seria de vez em quando parar e analisar: quem a gente é, o que fazemos com a nossa vida, o tempo, os amores". (Lya Luft)
sábado, 12 de setembro de 2009
Lua adversa
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.
Fases que vão e vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.
E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...
(Cecília Meireles)
Astigmatismo
Onde solidão, leio primavera
Onde quente, leio tremor
Onde amargo, leio mel
Onde sombra, leio sol
Onde futuro, leio ancião
Onde simples, leio teia
Onde mar, leio sede
Onde vida, leio vazio
Onde nunca, leio talvez
Onde chuva, leio varal
Onde bravo, leio cordeiro
Onde muito, leio migalhas
Onde pedra, leio nuvem
Onde santo, leio tesão
Onde você, leio ninguém.
(Mony Rocha)
Primeiros capítulos ou Boletim emocional - Parte I
sexta-feira, 11 de setembro de 2009
Preciso tanto
Emergência
Insônia
Nem na morte espero dormir.
Espera-me uma insônia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.
Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite —
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!
Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!
Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.
Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.
Estou escrevendo versos realmente simpáticos —
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!
Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir.
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstração de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo — sei lá salvo o quê...
Não durmo. Não durmo. Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo exceto no poder dormir!
Ó madrugada, tardas tanto... Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...
Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.
Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.
Vem, madrugada, chega!
Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não tenho energia para nada, para mais nada...
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim, escritos no dia seguinte.
Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.
Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz em toda a Natureza.
A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exatamente.
A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras.
Costuma dizer-se isto.
A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,
Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.
Exatamente. Mas não durmo.
(Fernando Pessoa)
Acho que dá
Aqui não é o mundo de Adão
E volta e meia aqui tudo pifa
É tempo, grana, amor, avião
Então me bate aquele medo
Solidão geral
Mas tendo os meus amigos por perto
Eu acho que não fica tão mal
Só quero achar que vai dar
Periga escuta na esquina
Caretas marcam sob pressão
que a gente sempre com tudo em cima
o céu, a terra, a vida, a visão
Só quero mesmo que o meu desejo
Saiba sempre enlouquecer
E a calma acentuando meus medos
Assim eu acho que dá pra vencer
Só quero achar que vai dar
(Marina Lima / Tavinho Paes)
Blues do elevador
O que é se sentir sozinho
Mais sozinho que um elevador vazio
Achando a vida tão chata
Achando a vida mais chata
Do que um cantor de soul
Sou eu quem te refresca a memória
Quando te esqueces de regar as plantas
E de dependurar as roupas brancas no varal
Só faz milagres quem crê que faz milagres
Como transformar lágrima em canção
Vejo os pombos no asfalto
Eles sabem voar alto
Mas insistem em catar as migalhas do chão
Sei rir mostrando os dentes
E a língua afiada
Mais cortante que um velho blues
Como um poeta do passado
E fumar o meu cigarro
Na falta de absinto
Eu sinto tanto eu sinto muito eu nada sinto
Como dizia Madalena
Replicando os fariseus
Quem dá aos pobres empresta
A deus
(Zeca Baleiro)
Música
Se perdeu no fio da vida
E eu vou embora
Sem mais feridas
Sem despedidas
Eu quero ver o mar
Eu quero ver o mar
Eu quero ver o mar
Eu quero ver o mar
Se voltar desejos
Ou se eles foram mesmo
Lembre da nossa música
Música
Se lembrar dos tempos
Dos nossos momentos
Lembre da nossa música
Música
Nossas juras de amor
Já desbotadas
Nossos beijos de outrora
Foram guardados
Nosso mais belo plano
Desperdiçado
Nossa graça e vontade
Derretem na chuva
Se voltar desejos
Ou se eles foram mesmo
Lembre da nossa música
Música
Se lembrar dos tempos
Dos nossos momentos
Lembre da nossa música
Música
Um costume de nós
Fica agarrado
As lembranças, os cheiros.
Dilacerados
Nossa bela história
Tá no passado
O amor que me tinhas
Era pouco e se acabou
Se voltar desejos
Ou se eles foram mesmo
Lembre da nossa música
Música
Se lembrar dos tempos
Dos nossos momentos
Lembre da nossa música
Música
(Liminha / Vanessa da Mata)
Novamente
você não dá valor ao que possui
enquanto sofre o coração intui
que ao mesmo tempo que magoa o tempo
o tempo flui
assim o sangue corre em cada veia
o vento brinca com os grãos de areia
poetas cortejando a branca luz
e ao mesmo tempo em que machuca o tempo
me passeia
quem sabe o que se dá em mim
quem sabe o que será de nós
o tempo que antecipa o fim
também desata os nós
quem sabe soletrar adeus
sem lágrimas, nenhuma dor
os pássaros atrás do sol
as dunas de poeira
o céu de anil do pólo sul
a dinamite no paiol
não há limite no anormal
é que nem sempre o amor
é tão azul
a música preenche a tua falta
motivo dessa solidão sem fim
se alinham pontos negros de nós dois
e arriscam uma fuga contra o tempo
o tempo salta
(Fred Martins)
A gente se acostuma...
Todas as vidas
uma cabocla velha
de mau-olhado,
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho,
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda, desabusada,
sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha, e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra, meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada, tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.
(Cora Coralina)
quinta-feira, 10 de setembro de 2009
quarta-feira, 9 de setembro de 2009
O homem invisível
Vigília
Meu olhar manso e quente preso.
Vigília .
Se eu tivesse aí não tinha, não tava.
Minha boca muda só olhava.
Perseguia tua cor, teu dourado....
Ah se seu tivesse aí.....
E no meu silêncio, minha constância, te ensinava.
A esperar, como espera o cão.....
Se eu tivesse aí..
Eu me amava só um pouquinho enquanto esperava.
Cheiro de azul
De um azul assim
Tão fundo assim
Azul fosco
Que o céu e o mar
Quando se amavam
Eram um só azul
E as árvores verdes
Cor da terra
Aguardavam calmas
O rebentar do dia
E eu acordei poeta
Cheio de azul e verde
E cheirando a mar.
(Antonio Carlos Borges)
Itaipuaçu – 14 - 06/09/2009
móvel - ser
A peça móvel do seu corpo
Das frias e quentes
Noites longas
Sou o que sobra
Entre as carícias e delícias
Sou
Onde suas pernas
Caem
Onde sua boca
Cala
Sou
Onde meu coração
Acelerado
Grita seu nome.
(Antonio Carlos Borges)
São Gonçalo, Novembro 1993.
Itaipuaçu – o4-14/09/2009
Rio de Janeiro - 09/09/2009
Será arte?
A história de outro
Em minha própria história.
Expectador de mim mesmo
Autopsicográfo-me
Faço-me mito
Suporto a exaustiva fadiga
Da arte de mentir-me.
(Antonio Carlos Borges)
São Gonçalo, Janeiro de 1993.
Itaipuaçu 04/09/2009