terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Feche os olhos


Feche os olhos. Deixa eu te contar uma estória, a história, o que eu reluto tanto em falar. A minha vida não tinha sentido. Não que eu ache que sentido seja predicado obrigatório, mas ajuda. Fica mais fácil sair da cama de manhã cedo.
Prazer é sentido, meu amor? Eu sempre pensei que sim, eu que tanto me culpava por essas arestas, essas pequenas indisciplinas que me foram repreendidas. Acho que prazer é o sentido de tudo, inclusive de você estar aí e eu aqui, falando no seu ouvido. Não teria razão para contar nada, e não teria nada para contar, se não houvesse o sentido.
Não quis nascer para esperar morrer, você já sabe. Nisso todo mundo é igual. Mas, se todo mundo é assim, por que ninguém percebe o sentido das coisas? Por que é que todo mundo assiste à própria vida da janela, como se fossem convidados da própria festa? Talvez você não mereça saber, ainda. É preciso mergulhar um pouco mais fundo, é preciso ter mais coragem, inclusive para não precisar de ar lá embaixo. Lá embaixo é onde todas as coisas se fundem em seu sentido, e é por isso que lá (e quiçá somente lá) o sentido não importa; é a própria vida. Como a poesia, que, acima de qualquer outra arte, requer paciência. Os poemas lidos e relidos são continuamente reaprendidos, e apelam aos ouvidos, à razão e aos sentimentos de formas diferentes, a cada vez.
Só que todos temos um núcleo duro, algo que se mantém quase que incólume ao longo de nossas experiências, e que instintivamente procuramos preservar. Alguns chamam esse núcleo de alma. Pessoalmente, gosto de pensar que dentro de mim há um poço ancestral, de onde brota o que me é mais arraigado; os meus medos, as minhas idiossincrasias, as minhas esperanças… os meus sonhos. Essas são as minhas árvores de maravilha (“cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos porque os sabemos fora de relação com o que há na vida”, como disse Álvaro). É essa a minha salvação, a minha bússola, o meu norte, por onde não me perco. Quero nutrir Árvores de Maravilha, tantas quanto possível. Quantas eu conseguir plantar. E quantas você quiser partilhar comigo.
No entanto, não peço que você mergulhe junto. Só pedi para que você fechasse os olhos, e mesmo assim por alguns instantes. Se um dia você quiser mergulhar, procure a sua própria profundidade e se certifique das suas águas. Não conte comigo, eu posso não estar aqui.
Não quero que você saiba, só queria te contar.
Um dia disseram que eu seria assim, mas até agora eu não sabia. E que dor que é, saber que eu só tenho você com quem compartilhar essa descoberta, e, no entanto, não posso fazê-lo. Você não compreende, não porque não quer, mas porque não pode. Porque você não é o que eu sou. Muito menos eu posso ser outra coisa que não isso, que se estende ao seu lado e pede para que você feche os olhos e escute. Eu, que sou tão frágil, passarinho tão alvo, não consigo compartilhar essa fortaleza nova. Isso me frustra bem mais do que a você.
Como queriam que eu reagisse? Se você fosse como os outros, não ia querer que eu falasse nada. Ia querer que eu me deitasse e dormisse — o bom e velho sono dos justos — e que eu acordasse na hora certa, pesarosa ou destemida (tanto faria). Só que eu não posso. Os outros ainda não sabem, mas eu não posso, essa é que é a verdade. Eu sou inapta. Eu sou escorregadia.
Aquele doutor disse que meu problema é que eu estou vendo meus sonhos morrerem. Pode até ser isso mesmo, eu não sei, mas ele é o doutor, deve saber o que está falando. O que sinto, isso sim, é alguma coisa ainda indefinida, como quando se quer fazer uma pergunta embaraçosa: a frase está feita, até o ponto de interrogação, mas não se consegue expressá-la em som. Uma pergunta calada, não é mesmo? No final, tudo se resume a uma pergunta tapada por entre as amídalas.
O fato é que tem dias em que não me é possível viver senão assim: sou uma estrela de muitas pontas. Mas não sei para onde rumo, ou como devo me consumir. Você só me vê à noite. Só me sabe quando as luzes se apagam. A sua última pergunta antes de você dormir e sonhar com as estrelas. Vai ver é por isso que eu não pude te escrever, e agora sopro essas palavras. Não porque tudo isso no papel soaria piegas, e eu arriscaria ser mal-compreendida, mas porque escrever é abrir uma janela. E eu não sei com que paisagem eu me depararia.

(Aline Arroxelas)

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